quarta-feira, 30 de julho de 2014

Cristina Peri Rossi






Nas mansas correntes de tuas mãos
e em tuas mãos que são tormenta
na nave divagante de teus olhos
de rumo seguro
no redondo de teu ventre
como esfera para sempre inacabada
no vagar de tuas palavras
velozes como feras em fuga
na suavidade da tua pele
ardendo em cidades incendiadas
no sinal único de teu braço
ancorei o meu barco.
Navegaríamos,
se o tempo fosse favorável.



(Tradução de Albino.M.)

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Anna Ehre











BOLETIM SUPERLATIVO SOBRE O ESTADO DE CHICO APÓS HELENA





inspira cuidados, ainda que se declare feliz
exames mostram risos largos, medindo semanas
além de uma infestação generalizada de sol  

(como pensar se não for à sombra da dúvida?)

após cair de quatro e chamar girassol de bem-me-quer,
tem a certeza de um raio e nenhum sinal de noite

(como lembrar finais submerso em futuros?)

corre risco de vida em status de alacridade
por negligência ao aviso: “cuidado: profundidade ignorada”

amor é abissal oceano
impossível para os que se afogam em baldes 




arte por Kumi Yamashita 

terça-feira, 22 de julho de 2014

Rui Caeiro






SABEM QUE MAIS?




Sou um homem dado ao álcool e a eternas dúvidas
e que na rua ou lá onde seja a todo o momento pode tropeçar
ou morrer: voar é que é muito mais improvável

Sou um homem de áridas certezas e uma esperança
a essa arrasto-a pela mão pelos cabelos pelas orelhas
paro escuto e olho antes de atravessar

com ela. E não lhe sei o nome. E não me preocupo









Ferreira Gullar





TRADUZIR-SE





Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?



quarta-feira, 16 de julho de 2014

Leopoldo María Panero






MUTIS



Talvez fosse mais romântico quando
arranhava a pedra
e dizia por exemplo, cantando
da sombra às sombras,
assombrado pelo meu silêncio,
por exemplo: «devemos
lavrar o inverno
e existem sulcos, e homens na neve»
Hoje as aranhas fazem-me cálidos sinais dos
cantos do meu quarto, e a luz treme,
e começo a duvidar que seja certa
a imensa tragédia
da literatura.




Paulo Leminski






um poema
que não se entende
é digno de nota

a dignidade suprema
de um navio
perdendo a rota



Arte de Turner

http://meianoitetododia.blogspot.pt/