sábado, 27 de julho de 2013









MORTE




Sabemos que de todas as sementes
é a mais pesada. Havemos de esperar
por ela. Acolhemo-la e nada
podia ser tão nosso. Compreendemos
que no seu interior talvez exista
a última seiva, o rumor de outra
germinação para que fique
junto dela. Descai silenciosa
e devagar. A terra é o nosso corpo.





Fernando Guimarães

Arte de Gustave Courbet

sexta-feira, 26 de julho de 2013








O POEMA (I)



Esclarecendo que o poema
é um duelo agudíssimo
quero eu dizer um dedo
agudíssimo claro
apontado ao coração do homem

falo
com uma agulha de sangue
a coser-me todo o corpo
à garganta

e a esta terra imóvel
onde já a minha sombra
é um traço de alarme




Por Luiza Neto Jorge
Arte de Edward Hopper

terça-feira, 23 de julho de 2013








Como esta casa quero
abeirar-me da morte,

e assim fechar o corpo
no tempo de uma ave
cansada de sombras

fria, à espera
da fúria de deus.

Envelhecer escura
como esta casa,
cheia de fantasmas dentro

roseiras bravas
trepando ventanias

e um poço no sítio
difícil do coração.




Por Renata Correia Botelho

Arte de Paula Rego

sábado, 20 de julho de 2013












À meia-noite, há uma menina que aprende a andar de bicicleta. E o som da campainha do guiador, riso fresco de criança, insinua-se através da janela, aberta, porque é uma noite de Verão e o calor.
No tempo em que os anos me cabiam nas mãos, também eu. O cesto da bicicleta branca que haveria de ter quando crescida estava repleto de flores que pedalavam rua abaixo numa liberdade feita de vento no rosto, loucura sem tino. Quando crescida, pensou ser devaneio de menina. Sonho aguardado, sonho relegado. Sonho que não cabe, afinal, em tempo algum.

Quem salvaria o mundo esta noite? Foste tu quem te escolheste, pois eu pensei que quisesse falar de amor.





Por Elisabete Albuquerque

segunda-feira, 15 de julho de 2013







GOPALA




O céu sobre o mar
cintila
azul
sobre
azul: onda dança nuvem que passa.

Na pena de um pavão
uma gota
de orvalho
contém o universo inteiro.




Por  Micheliny Verunschk

Fotografia de Erik Reis

sábado, 13 de julho de 2013









Dia de Primavera –
numa poça de água
a última luz do dia




Por Kobayashi Issa
Tradução de Manuel Silva-Terra

sexta-feira, 12 de julho de 2013







ISTO PRETENDIA SER UM POEMA DE AMOR





Puxas-lhe as asas
e o saco fecha-se.
Depois dás-lhe dois nós
em cima das cascas de laranja e restos de banana,
das sobras do jantar,
umas dúzias de piriscas,
mais uma planta já morta.
A seguir são doze andares e alguns quarenta passos
até ao contentor – onde já mal cabe um saco.
Ao deixá-lo ali acende-se-te um número na mente, 
setenta e seis. São poucos ainda 
os sacos que enchestes juntos,
comparados com os mais de mil 
que encheste com Laura;
São muitos, um montão, comparando
com os dez apenas
que levavas daquela cave londrina de Marge
para um minúsculo depósito no pátio.
Em La Habana todas as noites
Amarilis pendurava o lixo nos ramos das árvores
- para evitar a rataria; 
enchestes os dois vinte e tal sacos.
É feio, bem sabes, esse teu costume
de computar amores em sacos de lixo,
pode ser que te passe um dia destes.
Doze andares lá em cima há uma luz, na tua cozinha.
E no cesto um novo saco para enchermos amanhã.







Por Juan Bonilla

Tradução de Albino M.









pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando





Por Paulo Leminski

sábado, 6 de julho de 2013

Manuel de Freitas











BETTER OFF WITHOUT A WIFE






Esquece o melhor que puderes.
Há drogas e cinemas (por
enquanto). Não vais ser tu a aprisionar
os gestos felizes ou sem rumo
de que ainda sou capaz.
Não é nada de pessoal, garanto-te.

Bebi sempre de mais, acordo
tarde e as crianças estão longe de ser
o meu animal doméstico preferido.
Detesto horários, famílias e obrigações.
Até a partilha dos lençóis,
quando não é o amor a rasgá-los.

Os dias, porém, depressa
nos obrigam ao esterco das rotinas,
ao desejo inútil de procurar
a morte noutros braços.

Mas não. Não vou mudar de marca
de cigarros nem de pasta
dentífrica. Acordo logo que puder,
já sabes. Telefono-te rouco,
eventualmente triste, a precisar
de alguma liberdade para poder provar,
sozinho, que a liberdade não existe
mas dá bastante jeito.

E no entanto, depois disto tudo,
é altamente provável que eu te queira
amar. Como não sei melhor, como sei.





Por Manuel De Freitas
Arte por Van Gogh


quarta-feira, 1 de maio de 2013



OS IOGURTES



Era uma vez uns iogurtes estragados
comprei-os no jumbo pois estavam danificados
eram de morango atum e abacaxi,
chegou lá uma senhora compro-os ali.

Fui ao continente e disseram-me assim :
conte com o continente e eu respondi :
eu não quero contar com o continente
quero contar com o iogurte de amendoim.

Fui ao pingo doce e disseram-me assim :
pingo doce venha cá e eu respondi :
eu não quero contar com o pingo doce
quero contar e com os iogurtes de amendoim.

Fui ao minipreço e disseram-me assim:
arredondamos-lhe o preço e eu respondi :
eu não quero preços arredondados quero é um iogurte de amendoim!




Por Clara Rodrigues (10 anos)

domingo, 24 de março de 2013










Na noite clara da tua morte Pai
parto de vez para a margem da brandura
Levo nos olhos esta luz de dor
feixes opacos medas de cansaço
(como as que carregavas)
seara que nasce no sonho condenada
quando na alma a chama esmoreceu
Chegou-me a mim: já nada perdura
Querias saber o que era aquele nada
contra o qual lutava – sou eu
vazio de ti. Poupámos o Futuro.





Por Miguel Martins

sábado, 2 de março de 2013








LITERATURA AMERICANA





Poetas e escritores
movem-se para o interior do vazio
que Edward Hopper lhes deixou.
Instalam-se em espaços desprovidos
onde a luz foi purgada e descolorida até se tornar 
numa espécie de branco-crânio, onde nada 
cresce senão a ausência. Onde falta alguma coisa,
o homem pelo qual espera uma mulher,
ou a mobília num quarto
nu como uma cama de hospital
depois do doente ter morrido.
Estes interiores desolados
são aquilo que eles têm procurado,
os escritores, chegando aqui com a sua bagagem
feita de varas de vedores, os seus livros com badanas,
as suas difíceis fotografias de família,
as suas camas granulosas e a sua inclinação
para começar fogos em quartos vazios.




Por Lisel Mueller
tradução de Lp, Do trapézio sem rede
Arte de Edward Hopper

sábado, 16 de fevereiro de 2013








A EDIÇÃO INGLESA
para a Mariana Pinto dos Santos




Na primavera de 1476
o jovem Leonardo da Vinci
escreveu no verso de uma carta
desesperada: If there is no love,
what then? Escreveu-o, bem
entendido, no seu vernáculo
nativo – eu é que só tenho
a edição inglesa.

De quantas coisas
nesta vida, meu Deus, só tenho
a edição inglesa – quer dizer,
a precária, aproximativa
tradução? E que fazer
com estas noites de Junho,
se o amor, justamente,
é uma delas?




Por Rui Pires Cabral








A DERROTA




Então a derrota é este sofá com todas 
estas almofadas acompanhando a curva
do meu corpo prostrado? Comprei o pacote
mais caro de canais não tenho calor nem
frio e brevemente ela não virá tocar-me
à campainha (o deserto é desimpedido
vê-se desde a varanda até longa distância).


Não dói assim tanto afinal e se excluir
a infelicidade que deveras sinto
ser feliz será qualquer coisa semelhante.




Por António Gregório

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013








[PONHO PALAVRAS ONDE VOU MORRER]





ponho palavras onde vou morrer
e estremeço porque a vida se dissipa
como água derramada no soalho

entre muitas outras coisas escrever
é procurar nos confins

além tempo e sucessão de espaços
a demorada nomenclatura do efémero





Por Miguel-Manso

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013








PÃO




De que recantos da minha vida
surgiu na sala agora esta gente.

Falam para mim entre si não
e os mortos estão ausentes.

Esta preocupação de onde vem
de em casa não haver gota de pão.




Por Francisco José Craveiro de Carvalho







LATITUDES DO CAVALO 




Quando o mar tranquilo conspira armaduras
E as suas morosas e abortadas
correntes engendram monstrinhos,
A navegação tem certa a morte.
Horrífico instante
E o primeiro animal vai borda fora
Patas com toda a fúria devorando
O próprio galope obstinado e verde.
E erguem-se as cabeças
Equilíbrio
Delicado
Suspensão
Aceitação
Na ânsia das ventas mudas
Depuradas com cuidado
E seladas.




Por Jim Morrison
Tradução de Manuel João Gomes

domingo, 10 de fevereiro de 2013








CONSOANTES ÁTONAS





Emudecer o afe(c)to português?
amputar a consoante que anima
a vibração exa(c)ta 
do abraço, a urgência

Tá(c)til do beijo? Eu não nasci
nos Trópicos; preciso desta interna
consoante para iluminar a névoa
do meu dile(c)to norte.





Por Inês Lourenço

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013














À meia-noite, há uma menina que aprende a andar de bicicleta. E o som da campainha do guiador, riso fresco de criança, insinua-se através da janela, aberta, porque é uma noite de Verão e o calor.
No tempo em que os anos me cabiam nas mãos, também eu. O cesto da bicicleta branca que haveria de ter quando crescida estava repleto de flores que pedalavam rua abaixo numa liberdade feita de vento no rosto, loucura sem tino. Quando crescida, pensou ser devaneio de menina. Sonho aguardado, sonho relegado. Sonho que não cabe, afinal, em tempo algum.

Quem salvaria o mundo esta noite? Foste tu quem te escolheste, pois eu pensei que quisesse falar de amor.






Por Elisabete Albuquerque
arte de Aileen Leijten 

domingo, 27 de janeiro de 2013








TODAS AS PALAVRAS





As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.




Por Manuel António Pina