terça-feira, 21 de agosto de 2012











O ANJO




Perdeu-se de seu bando numa revoada vespertina. Então, perambulou ocioso por campos, revivendo carcaças, desviando enchentes dos vilarejos, curando a peste do gado e a febre da lavoura, até chegar à cidade. Entretanto, só as crianças ainda sem batismo o viam. E ele, em dialeto de bicho de pelúcia, lhes falava de coisas que ainda não tinham nome. Passou a habitar empoleirado no ombro de uma menina cega. Quando ninguém estava olhando, o anjo interrompia sua cegueira, e a menininha, disfarçadamente deslumbrada, podia ver até através das pessoas.






Por Wilson Nanini
Arte de Duy Huynh

quarta-feira, 15 de agosto de 2012








NOSTALGHIA




Ouvia-te falar e sentia
as chamas retomarem
as paredes do teu coração
de igreja abandonada.
O céu, nessa tarde,
era um leque de lantejoulas
ao rés do teu sorriso
e dos meus olhos encadeados.
Doía-me esse excesso de luz
que te fazia toda sombra,
o crepitar morno da pele
antes do incêndio consumado.

Sempre que dizias o seu nome,
riscavas outro fósforo –
ele avançava dentro de ti,
nas mãos uma vela prestes a cair.
Amo demasiado o fogo
para a suster. Prefiro
redesenhar as nossas cicatrizes,
ser depois a memória da pedra
fria em pleno Verão.




Por Inês Dias
Imagem de “Nostalgia” de Tarkovsky

sábado, 11 de agosto de 2012








TRAÇADOS URBANÍSTICOS





Tal como qualquer cidade
também nós escondemos
turvos itinerários, edifícios arruinados,
escuras vielas de rancor ou desejo,
arrabaldes de medo ou parques para o amor,
cantos em penumbra onde ocultar segredos,
praças que nunca visitamos
e aborrecidos museus onde expor lembranças
que não interessam a ninguém.
A nós também nos habitam cidadãos terríveis:
funcionários do tédio,
mensageiros de moto levando para muito longe
o pequeno embrulho – primoroso e com laço –
dos remorsos.
Viajantes que passam por nós
com as suas malas a caminho de outros corpos
e sobretudo
transeuntes alheios à nossa própria vontade,
incivis e teimosos;
têm nomes ridículos
tal como os sentimentos amor, rancor ou medo
e especulam – como vulgares comerciantes –
com o preço
por metro quadrado do nosso coração.





Por Silvia Ugidos
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães
Fotografia de William Gedney

sexta-feira, 10 de agosto de 2012









SOMBRA DE ANA





 Passa-me a mão no cabelo, Ana,
passa-me a mão.
Serei criança para teus conselhos, Ana,
ou ancião.
Olha a neve que me cobre, Ana
- a desilusão.
Viver pesa-me neste mundo, Ana,
são já mil anos.
A chama viva que me queima, Ana,
não me dá trégua.
E nada vejo porque sou luz, Ana,
e vivo sem corpo.
Passa-me a mão no cabelo, Ana,
passa-me a mão,
não digas nada, vá, dá-me conselhos,
que eu estou cansado.





Por Josep Palau
Tradução de Albino M.

domingo, 5 de agosto de 2012









TRÓIA




 Toda saudade
repousa nas palavras,
tem cheiro de pinho
e ossos muito brancos.
Toda saudade:
velas arreadas
dos mastros dos batéis,
última visão da chama apagando,
canção de helenas nuas
perdida nos lábios de Ílion.
Em tudo,
o teu nome de pedra,
Saudade,
cadela morta.




Por Micheliny Verunschk

sábado, 4 de agosto de 2012















liga-me à sua maneira, diz do marido

uma mulher cheia de nódoas negras

ainda ontem me ofereceu

um ramo de margaridas

foi depois desta

e levanta a blusa e aponta

para uma negra na barriga

e antes desta, mostra outra

um ramo de violetas

bem cheirosas, ainda não murcharam

vai variando nas flores para

ver se me mantém entretida

que quer que quer é a vida...










Por Bénédicte Houart 

sexta-feira, 3 de agosto de 2012











PARIS





nunca
mesmo em tempos mais calmo
alguma vez
sonhei
andar de bicicleta por aquela
cidade
usando uma boina

e
Camus
sempre
me chateou.




Por Charles Bukowsky
Tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho