sexta-feira, 22 de junho de 2012










Nem mais uma palavra sobre a beleza,
chega de palavras sobre a beleza, a visão nocturna
dos teus olhos não importa verdadeiramente
a ninguém. Melhor será observar a brusquidão
das aves (andorinhas, cartaxos, pardais vulgares...)
que, sem defesa, sobrevoam, ao entardecer,
os olivais que restam junto aos blocos 
de apartamentos que alcanço da tua janela.
Vou deixar de lado todas as imagens que conheço,
usar apenas palavras lentas e rasteiras.
Provavelmente, terei de descobrir uma língua
nova, mais humilde, para falar destas aves,
do modo como guinam na luz desguarnecida,
como pousam nos ramos das oliveiras,
ou nos telhados, à nossa frente
- com a traição do mundo em suspenso -
ou nos cabos eléctricos estendidos ao longo de ruas
por onde raramente passa alguém.
É sobre isto, sobre esta estranha veemência
que vou escrever, sobre o que verdadeiramente
importa. Só preciso de me defender de palavras turvas.





Por Luís Filipe Parrado

domingo, 17 de junho de 2012








A LA CARTE




I
Para seduzir a carne
Jesuína tomava ervas, folhas, azeites
e conversava com a chama como se fosse gente
Quando no inicio da tarde
todos à mesa respiravam a ponta dos dedos
ela salpicava amor pelos olhos
O tempero

II
Para se desfazer dos cortes
entre esperas e descaminhos,
Cecília jejuava relógios alimentando-se de certezas
Havia outro sabor depois da faca
A sobremesa



Por Anna  Ehre
Mais poesia sua em http://cantarocantar.tumblr.com/
Arte de Ticiano

sábado, 16 de junho de 2012










PLANO DE EVASÃO




Que mais podemos fazer?
Este amor é um país cansado

que não nos deixa mudar.
O medo cerca as fronteiras

e a capital é Nenhures,
cidade de perdulários

e pequenas ruas tortas
onde vem morrer a noite –

aqui estamos ambos sós,
desunidos, extraviados,

não há táxis na praceta
nem cinzeiros nos cafés

e perdemos os amigos
entre as curvas de um enredo

que deixámos de seguir.
Mas não era nada disto

o que tinha na cabeça
ao começar a escrever:

os versos chamam o escuro,
abrem os portões ao frio

e eu quero estar nas colinas
do outro lado do rio.



Por Rui Pires Cabral

quinta-feira, 14 de junho de 2012













Ouvem-se azuis na noite. E, na hora sonâmbula, ela sente dedadas frias na pele e sabe que há-de cuspir a alma pelos olhos molhados até adormecer de cansaço. A loucura que os deuses ofertam como abrigo entre os nadas e as solidões.

Sempre que adormecer na brisa, haverá alguém que a carregue em braços para um lugar mais de dentro?

Pergunto-me se acaso sentes o que há de encanto no amor sem sangue, incondicional, gratuito. O que há de encanto em fazer de um estranho, à custa de tanto amor, a pele tua num abraço. O que há de encanto em habitar sonhos alheios, sabendo-te olhada como coisa preciosa.

Pergunto-me se sabes o quanto dói esta visão vicariante da vida. A coragem de ser fraco na fraqueza alheia,  que se quer força e cavaleiro e lança, mas que tantas vezes vacila. Pergunto-me se sabes que a dor que não sentes em ti é dor no outro, mas é dor também.

Sabes de uma coisa? Era ela a menina que lia romances de amor. 






Por Elisabete Albuquerque

segunda-feira, 11 de junho de 2012









UMA COISA A MENOS PARA ADORAR





Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra
uma coisa a menos para adorar
quando tudo se apaga
as paisagens descobrem-se perdidas
irreconciliáveis

entendes por isso o meu pânico
nessas noites em que volto sem razão nenhuma
a correr pelo pontão de madeira
onde um homem foi morto

arranco como os atletas ao som de um disparo seco
mas sou apenas alguém que de noite
grita pela casa

há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo

hoje estive tão triste
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora
enquanto pensava no homem que vi matar
e de quem não soube nunca nada
nem o nome

  






Por José Tolentino Mendonça

Fotografia de weegee

domingo, 3 de junho de 2012







CARO CONSELHEIRO SENTIMENTAL





Recentemente matei o meu pai
E em breve casarei com a minha mãe;
A minha questão é:
Deve a parte da família dele ser convidada para a cerimónia?





Por Bill Knott
Tradução de Lp, Do trapézio sem rede