quarta-feira, 28 de setembro de 2011










DESOBEDIÊNCIA CIVIL







se a preguiça encantadora dos homens

deve acabar a sua obra e a sua língua de fogo

unir os dias e as noites do desejo

então saudemos as grandes afirmações:

«a poesia deve ser feita por todos» e

«a poesia é feita contra todos»




os devoradores de cultura podem sair pela esquerda alta

fiquem os amantes obscuros e o único os raros

todos os nus

porque a língua portuguesa não é a minha pátria

a minha pátria não se escreve com as letras da palavra pátria




Vêde

sobre a coroa de silêncio do vulcão adormecido

uma ave a sua plumagem de cores trémulas

e as asas que escrevem letra a letra o nome definitivo do homem

e no entanto multidões de gnomos

cada qual com o seu estandarte

esperam à entrada dos cemitérios

para saudar o fogo-fátuo




eu passo de bicicleta à velocidade do amor

atravesso a terra de ninguém com um dia de chuva na cabeça

para oferecer aos revoltados







Por António José Forte
arte por Aldina
















MOTET POUR LES TRÉPASSÉS









Este poema seria teu, Inês,

se não fosse de ninguém.

Ao chegarmos de Lisboa,

depois da paragem ritual

no Café Lisbela — onde tudo

se compra e tudo se perde —,

vimos uma cadeira de rodas

à venda, uma motorizada

ao lado, uma igreja vazia

da qual certamente gostariam

Andrei Tarkovsky, Tonino

Guerra ou Ana Teresa Pereira.




A poucos metros dali, o meu pai

morria, tentava penosamente resistir

a uma hemorragia cerebral. Mas

isso, claro, ninguém precisa de saber.

Apenas tu, poema, que vieste de comboio

confirmar dia após dia que o Tejo

está onde sempre esteve: triste, azul, parado.










Por Manuel de Freitas

domingo, 25 de setembro de 2011
















RECADO AOS CORVOS







Levai tudo:

o brilho fácil das pratas,

o acre toque das sedas.




Deixai só a incombustível

memória das labaredas.








Por A. M. Pires Cabral

sexta-feira, 23 de setembro de 2011


















SEPTEMBER SONG









Ouve, pelo começo de Setembro,

o clamor e a melancolia

deste mar atravessando a tua vida,

as páginas de um livro por abrir.




Ouve como se vê,

sobre as falésias deste mês abrupto,

alguém que te celebra

muito depois das palavras.




É tão difícil escrever um poema

que não fale da morte.








por Manuel de Freitas

imagem retirada do blog Cântaro Cantar de Anna Ehre

segunda-feira, 5 de setembro de 2011



















DESAGRAVO

para Andrei









Por que o sol e esse azul desesperado?

Por que os olhos acesos?

Por que a música amplificada?

Por que esse passo de dança em tom de carrossel?

Por que os fogos de artifício?

Por que o bolo e a festa?

Por que o braço aberto a um passo do vôo?

Por que os pássaros em cada esquina?

Por que as esquinas cheias de horizonte?

Por que essa alegria sem portas?

Por quê?

Não sabem?

Rosângela está morta.









Por Anna Ehre
imagem de AAT

quinta-feira, 1 de setembro de 2011


















A verdadeira mão que o poeta estende

não tem dedos:

é um gesto que se perde

no próprio acto de dar-se




O poeta desaparece

na verdade da sua ausência

dissolve-se no biombo da escrita




O poema é

a única

a verdadeira mão que o poeta estende




E quando o poema é bom

não te aperta a mão:

aperta-te a garganta










Por Ana Hatherly















ABERTURA










Eu abria o rádio

eu abria o aparelho

era uma flor branca que eu abria

de sopro

eu soprava e eu abria a flor

A flor tocava música com as várias mãos

das pétalas

A flor tocava uma simbolização dum tempo

caído podre de espera de cor branca

O tempo espera-se em pintar-se

de branco

para cegar uma cor

mas a minha flor abria-se de

pétalas

e as várias mãos escreviam um

piano por cima de teclas grãos vários

seguidos uns aos outros.

Era assim uma harmonia

entre flor

tempo a querer-se de cor branca em cegar

era assim umas teclas cantarem filhos de grãos

por dentro dos grãos mesmos

unidos que eram em dimensão de lado

era assim um cantar-me o tempo todo

não era assim um cantar-me o tempo todo

era assim um pairar-me

o tempo todo em Nijinsky

o tempo em um fazer-me ballet pelo quarto inteiro

quando eu tinha aberta a cabeça que imagino

da música

Abria a pétala favorita do harém

onde no centro um sultão da flor

no centro que era o amarelo da flor

abria a pétala favorita da flor

e então

e era então que me soava dentro da manhã

do quarto

uma música desfibrada de tempo serôdio

como se tudo me fosse em longe

como se a música levasse longe

o céu.











Por António Gancho
















HOMENS QUE TRABALHAM SOB A LÂMPADA…








Homens que trabalham sob a lâmpada

Da morte

Que escavam nessa luz para ver quem ilumina

A fonte dos seus dias




Homens muito dobrados pelo pensamento

Que vêm devagar como quem corre

As persianas

Para ver no escuro a primeira nascente




Homens que escavam dia após dia o pensamento

Que trabalham na sombra da copa cerebral

Que podam a pedra da loucura quando esmagam as pupilas

Homens todos brancos que abrem a cabeça

À procura dessa pedra definida




Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento

Livre. Que vêm devagar abrir

Um lugar onde amanheça.

Homens que se sentam para ver uma manhã

Que escavam um lugar

Para a saída.










Por Daniel Faria