sexta-feira, 31 de dezembro de 2010



LIÇÃO DE TRAVESSIA






Sempre que vejo um rio

parece que do outro lado está a Argentina



As balsas carregadas da infância

sumiram do meu olhar

Mas a ponte permaneceu

como eterna promessa

de que todas as margens podem ser pisadas



O mundo não tem lado certo

pois há uma ponte sólida

por cima de todas as águas






Por Nei Duclós

domingo, 26 de dezembro de 2010



OS NUS DE BONNARD






A sua mulher. Durante quarenta anos ele pintou-a.

Uma e outra vez. O nu da última pintura

igual à jovem nudez da primeira. A sua mulher.



Tal como se recordava dela enquanto jovem. Como se ela o fosse.

A sua mulher no banho. Na sua cómoda

em frente ao espelho. Nua.



A sua mulher com as mãos debaixo dos seios,

olhando o jardim.

O sol concedendo cor e calor.



Todas as coisas vivas a florescer ali.

Ela jovem e trémula e tão desejável.

Quando ela morreu, ele pintou por mais algum tempo.



Algumas paisagens. Depois morreu.

E puseram-no junto dela.

A sua jovem mulher.






Por Raymond Carver
Tradução de Lp, Do trapézio, sem rede, http://arspoetica-lp.blogspot.com/
Arte de Pierre Bonnard

sábado, 25 de dezembro de 2010



MORTE AO MEIO-DIA






No meu país não acontece nada

à terra vai-se pela estrada em frente

Novembro é quanta cor o céu consente

às casas com que o frio abre a praça



Dezembro vibra vidros brande as folhas

a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal

que o mais zeloso varredor municipal

Mas que fazer de toda esta cor azul



que cobre os campos neste meu país do sul?

A gente é previdente cala-se e mais nada

A boca é pra comer e pra trazer fechada

o único caminho é direito ao sol



No meu país não acontece nada

o corpo curva ao peso de uma alma que não sente

Todos temos janela para o mar voltada

o fisco vela e a palavra era para toda a gente



E juntam-se na casa portuguesa

a saudade e o transístor sob o céu azul

A indústria prospera e fazem-se ao abrigo

da velha lei mental pastilhas de mentol



Morre-se a ocidente como o sol à tarde

Cai a sirene sob o sol a pino

Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde

Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?



Há neste mundo seres para quem

a vida não contém contentamento

E a nação faz um apelo à mãe,

atenta a gravidade do momento



O meu país é o que o mar não quer

é o pescador cuspido à praia à luz

pois a areia cresceu e a gente em vão requer

curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia



A minha terra é uma grande estrada

que põe a pedra entre o homem e a mulher

O homem vende a vida e verga sob a enxada

O meu país é o que o mar não quer







Por Ruy Belo

terça-feira, 21 de dezembro de 2010



METADE






Que a força do medo que eu tenho,

não me impeça de ver o que anseio.



Que a morte de tudo o que acredito

não me tape os ouvidos e a boca.



Porque metade de mim é o que eu grito,

mas a outra metade é silêncio...



Que a música que eu ouço ao longe,

seja linda, ainda que triste...



Que a mulher que eu amo

seja para sempre amada

mesmo que distante.



Porque a metade de mim é partida,

mas a outra metade é saudade.



Que as palavras que eu falo

não sejam ouvidas como prece

e nem repetidas com fervor,

apenas respeitadas,

como a única coisa que resta

a um homem inundado de sentimentos.



Porque metade de mim é o que ouço,

mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora

se transforme na calma e na paz

que eu mereço.



E que essa tensão

que me corrói por dentro

seja um dia recompensada.



Porque metade de mim

é a lembrança do que fui,

a outra metade eu não sei.



mais do que uma simples alegria

para me fazer aquietar o espírito.



E que o teu silêncio

me fale cada vez mais.



Porque metade de mim

é abrigo, mas a outra metade é cansaço.



Que a arte nos aponte uma resposta,

mesmo que ela não saiba.



E que ninguém a tente complicar

porque é preciso simplicidade

para fazê-la florescer.



Porque metade de mim é platéia

e a outra metade é canção.



E que a minha loucura seja perdoada.



Porque metade de mim é amor,

e a outra...

também.






Por Ferreira Gullar

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010



CÁRCERE PRIVADO






vivo em cárcere privado

por livre e espontânea vontade

ao meu amor muito obrigado

por me livrar da liberdade






Por Chacal
Arte por Salvador Dalí

domingo, 12 de dezembro de 2010



LUARES






Ao longe,

com nossa teia,

tomaremos os remos

e feito postigos destes suspiros

desabitaremos pessoa do nada



fonte de gentes

sujeitos

pontes

e passagens



andarilhos Spartacus



Em letras,

das garrafas jogadas ao tempo,

seremos os cartões postais…






Por Carmen Sílvia Presotto
Ler mais poesia sua e de outros em http://vidraguas.com.br/wordpress/
Arte de Steve Hanks

sábado, 11 de dezembro de 2010

ver apresentação

BLADE RUNNER WALTZ






Em mil novecentos e oitenta e sempre,

ah, que tempos aqueles,

dançamos ao luar, ao som da valsa

A Perfeição do Amor Através da Dor e da Renúncia,

nome, confesso, um pouco longo,

mas os tempos, aquele tempo,

ah, não se faz mais tempo

como antigamente

Aquilo sim é que eram horas,

dias enormes, semanas anos, minutos milênios,

e toda aquela fortuna em tempo

a gente gastava em bobagens,

amar, sonhar, dançar ao som da valsa,

aquelas falsas valsas de tão imenso nome lento

que a gente dançava em algum setembro

daqueles mil novecentos e oitenta e sempre.






Por Paulo Leminski
Excerto de "Blade Runner" de Ridley Scott

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010



O CORVO






Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,

Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,

E já quase adormecia, ouvi o que parecia

O som de alguém que batia levemente a meus umbrais

«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.

É só isso e nada mais.»



Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,

E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.

Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada

P'ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais —

Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,

Mas sem nome aqui jamais!



Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo

Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!

Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,

«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;

Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isso e nada mais».



E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,

«Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;

Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,

Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,

Que mal ouvi...» E abri largos, franquendo-os, meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.



A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,

Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.

Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,

E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —

Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isto só e nada mais.



Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,

Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.

«Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela.

Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.»

Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.

«É o vento, e nada mais.»



Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,

Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.

Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,

Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais,

Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.

Foi, pousou, e nada mais.



E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura

Com o solene decoro de seus ares rituais.

«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado,

Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!

Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»

Disse-me o corvo, «Nunca mais».



Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,

Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.

Mas deve ser concedido que ninguém terá havido

Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,

Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,

Com o nome «Nunca mais».



Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,

Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.

Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento

Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais

Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais».

Disse o corvo, «Nunca mais».



A alma súbito movida por frase tão bem cabida,

«Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais.

Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono

Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,

E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais

Era este «Nunca mais».



Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,

Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;

E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira

Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,

Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,

Com aquele «Nunca mais».



Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo

À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,

Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando

No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,

Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,

Reclinar-se-á nunca mais!



Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso

Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.

«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te

O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,

O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».



«Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta!

Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,

Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida

Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,

Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».



«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte!

Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!

Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!

Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».



E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda

No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.

Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha,

E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,

E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,

Libertar-se-á... nunca mais!






Por Edgar Allan Poe
Tradução de Fernando Pessoa (ritmicamente conforme o original)
Arte por Gustav Doré


SÃO OS PÁSSAROS QUE LEVANTAM O DIA PARA O CEGO






São os pássaros que levantam o dia para o cego.

Ouve-se a luz pendurada das árvores

e uma transfusão de sangue acelerado que acumula nos tímpanos

os latidos roubados à noite.



Amanhece.



Tíbias gotas de azul salpicam de manhã

os párabrisas dos carros.

Alguém, equivocado,

abriu o guarda-chuva pensando que chove.






Por Federico Gallego Ripoll
Tradução de Lp, Do trapézio, sem rede (http://arspoetica-lp.blogspot.com/)

domingo, 5 de dezembro de 2010



RETRATO






Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo.



Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.



Eu não dei por esta mudança

tão simples, tão certa, tão fácil:

- Em que espelho ficou perdida

a minha face?






Por Cecília Meireles
Arte por Apard Szènes


DISPONIBILIDADE






Vem ver a vida

Passear silenciosamente

Como a ave no ar claro.



Vê-a que desce. Prende-a.

Nas tuas mãos em concha

Fica um instante.



Deixa-a fugir. Outras há.






Por Ruy Cinatti

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010



INSTANTES






«Se eu pudesse viver novamente a minha vida,

na próxima trataria de cometer mais erros.

Não tentaria ser perfeito; relaxaria mais.

Seria mais tolo do que tenho sido; na verdade,

Poucas coisas levaria a sério.

Seria menos higiénico.

Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,

subiria mais montanhas, nadaria mais rios.

Iria a lugares onde nunca fui,

tomaria mais sorvetes e menos lentilhas,

teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.

Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente

cada minuto de sua vida; claro que tive momentos de alegria.

Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos.

Porque, se não sabes, disso é feita a vida, só de momentos,

não percas o agora.

Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termómetro,

uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas;

se eu voltasse a viver, viajaria mais leve.

Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço

no começo da primavera, e continuaria assim até o fim do Outono.

Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres

e brincaria com mais crianças,

se tivesse outra vida pela frente.

Mas vejam, tenho 85 anos

e sei que estou morrendo...»






Atribuído a Jorge Luís Borges
Arte de J. Bosco

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010



A BOSTA É POP






Minha poesia não é pra ser recitada em

Saraus ou Academias de Letras.

É pra ser lida, sentida

No fundo do estômago

No útero, no saco escrotal.

Minha poesia vem das ruas

Avenidas encardidas

Lamacentas

Limo, excrementos

Vômitos esverdeados

De quem tem sede de vida.

Minha poesia não é de métrica

Nem rima rica

A pobreza define e alimenta os versos

Tão indigestos que

Dão azia, caganeira

Larica.

Minha poesia é kirsh

Sem cores de Almodóvar

Tudo em preto e branco

Cadelas e cachorros não enxergam colorido.

Minha poesia é pop.

A Bosta é pop!

Todo mundo faz e

Cada qual a sua maneira.

Mais dura ou mais mole

Depende do que se comeu na véspera.

Minha poesia pode ser diluída

Na cerveja, na cachaça

Na garapa vendida na feira e

Mais dois pastéis

bem grandes

que possam caber perplexidade

e espanto.

Minha poesia está sempre indignada

Aterrorizada

Por tanta genialidade óbvia

Que só vive de conceito

Na pia batismal

Sacramentando o egoísmo e a sordidez;

O olhar míngua ao dar nome

ao próprio umbigo.

Minha poesia está sempre de olhos arregalados

Sem dormir a canção de Drummond

Que Me fez acordar para sempre.

Só a criança em Mim dorme

Porque há mais de um século está morta.

Minha poesia é feita do lixo!

Faz desmoronar o planeta insustentável

Empobrecido pelo ser humano

E seu medo de amar.



Meu poema é o dejeto que não se recicla!






Por Lou Albergaria
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e http://sementedeamora.blogspot.com/

segunda-feira, 29 de novembro de 2010



POEMA À MÃE






No mais fundo de ti,

eu sei que traí, mãe!



Tudo porque já não sou

o retrato adormecido

no fundo dos teus olhos!



Tudo porque tu ignoras

que há leitos onde o frio não se demora

e noites rumorosas de águas matinais!



Por isso, às vezes, as palavras que te digo

são duras, mãe,

e o nosso amor é infeliz.



Tudo porque perdi as rosas brancas

que apertava junto ao coração

no retrato da moldura!



Se soubesses como ainda amo as rosas,

talvez não enchesses as horas de pesadelos...



Mas tu esqueceste muita coisa!

Esqueceste que as minhas pernas cresceram,

que todo o meu corpo cresceu,

e até o meu coração

ficou enorme, mãe!



Olha - queres ouvir-me? -,

às vezes ainda sou o menino

que adormeceu nos teus olhos;



ainda aperto contra o coração

rosas tão brancas

como as que tens na moldura;



ainda oiço a tua voz:

"Era uma vez uma princesa

no meio de um laranjal..."



Mas - tu sabes! - a noite é enorme

e todo o meu corpo cresceu...



Eu saí da moldura,

dei às aves os meus olhos a beber.



Não me esqueci de nada, mãe.

Guardo a tua voz dentro de mim.

E deixo-te as rosas...



Boa noite. Eu vou com as aves!






Por Eugénio de Andrade
Arte de Diego Rivera

domingo, 28 de novembro de 2010



Ontem, descobri um dos crimes mais assombrosos. Há um método rude para que o sabiá cante mais: furam-lhe os olhos. Aí, na triste e escura solidão de sua vida, o pássaro lapida e rumina sua partitura inata, a aditiva, e passa a cantar o tempo todo, mais e mais bonito.

Abaixo, eis o depoimento de uma avezinha pungida.





JAZZ LARANJEIRO






tudo belo aos olhos de

doce-de-flor-de-laranjeira



n` desjejum não m`alenta

geléia de borboletas



: me álacre era o céu-sol uma

distância de vôo percorrível



ora perambulo em passos-saltos

cúbicos: me tumula me berça

demolição de algazarra de

ciranda incinerada



me queimam me põem

estrepe arame nos olhos



ah há

quem me unte os olhos com bento cuspe?



por via escuríssima meu canto

sai labiríntico rude mas mais belo



: o céu-sol me

foi desaceso

– não me destila o sentir noite ou dia –



canto-peço-rezo

para alguém me devolvê-lo






Por Wilson Nanini
Ler mais poesia sua em http://wilsonnanini.blogspot.com/

sábado, 27 de novembro de 2010



QUINZE






Agora

que tenho quinze anos de novo

e a vida toda pela frente



Agora

que o tempo me respeita

e a luz desmaia quando te beijo



Agora

que eu menina

e tu conto



Agora

que te esqueço

se te vais



Agora

que tenho quinze

amor



Deixa-me esconder nos teus braços

só até passar a tormenta.






Por Paz Hernández Páramo
Tradução de Albino M. (http://ruadaspretas.blogspot.com/)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010



ZULMIRA, AO AMANHECER






No urinol público lia-se UTILIZAÇÃO GRATUITA.

Fiquei quase feliz (quantas coisas gratuitas

há neste mundozinho de horror?).

Mas o que desta manhã eu mais agradeço, Zulmira,

é a tua sopa, essa que tantas vezes

me salvou a vida, entre centenas de super bocks.



Não me inquietam os chulos, os assassinos

ou estes mendigos calados. Ilustríssima gente,

de uma má-raça inegável. Prefiro perder

com eles os meus dias, e falar da fome, dos joanetes

ou do preço do azeite. Não tenho tempo

para aprofundar desrazões, nem para conviver com puetas.



Sei apenas que as poucas pessoas que amei

estavam por detrás de um balcão

onde o álcool ardia, muito devagar.

Os meus pobres anjos.

Também por isso gostava de te obrigar a esta taberna,

exílio cantante de todas as minhas antigas manhãs.



Por esta mãe desolada, pelo rumor sombrio

do vinho que nunca azedou nos meus lábios,

por certas inábeis palavras que sobre os barris

faleceram e te pertenciam somente.



Mas «até logo, Zulmira», bem sabes que do amor

ou do futebol nada poderei jamais dizer

ou sentir. Entre os teus braços largos deponho

em silêncio aquela negra noite do meu mal.

Por uma sopa encorpada, sobre destroços

imperecíveis, bocados de morte partidos.






Por Manuel de Freitas

domingo, 21 de novembro de 2010



EXAME DE INGLÊS






Líamos Dylan Thomas para o teu exame de inglês,

mas não estava ali o teu exame, a severidade de uma aula,

a lição decisiva que era preciso temer.

Estava, sim, a colina dos fetos

com o seu sol tombando em rios de ouro palpável,

estava o sol sobre os declives

na sua sagrada fascinação de beijar

as crianças que acabavam de começar a andar.

Estavam as eiras de feno a partir das quais

segui o trilho das ervas altas

que me levou aos caminhos da minha infância.

Não havia ali nenhum mundo maciço,

antes uma substância núbil cobrindo o ar

na qual as minhas palavras se lançavam felizes

pelo seu som, pela sua cadência e cor.

Em voz alta Dylan Thomas para o teu exame de inglês,

juntos aprovámos esse regaço de luz verbal

comovida entre as folhas frescas dos fetos.






Por Roberto D. Malatesta
Tradução de Lp, Do Trapézio Sem Rede (http://arspoetica-lp.blogspot.com/)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010



A CIDADE E OS LIVROS


para D.Vanna Piraccini






O Rio parecia inesgotável

àquele adolescente que era eu.

Sozinho entrar no ônibus Castelo,

saltar no fim da linha, andar sem medo

no centro da cidade proibida,

em meio à multidão que nem notava

que eu não lhe pertencia - e de repente,

anônimo entre anônimos, notar

eufórico que sim, que pertencia

a ela, e ela a mim - , entrar em becos,

travessas, avenidas, galerias,

cinemas, livrarias: Leonardo

da Vinci Larga Rex Central Colombo

Marrecas Íris Meio-Dia Cosmos

Alfândega Cruzeiro Carioca

Marrocos Passos Civilização

Cavé Saara São José Rosário

Passeio Público Ouvidor Padrão

Vitória Lavradio Cinelândia:

lugares que antes eu nem conhecia

abriam-se em esquinas infinitas

de ruas doravante prolongáveis.






Por Antonio Cícero
Ler mais poesia sua e de outros em
http://antoniocicero.blogspot.com/

terça-feira, 16 de novembro de 2010



FOGO AZUL






Desanoitecendo…



De tua secreta busca

sou as páginas dobradas.

De tuas marés,

o rio que se curva.



Silêncio na mão da noite,

de tua boca, sob tambores,

acordo meus olhos.



Silêncio na mão da noite,

sonhas e me oceano

- Poesia Mulher -

fogo azul, sangro…






Por Carmen Silvia Presotto
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sábado, 13 de novembro de 2010



PROJECTO DE SUCESSÃO






Continuar aos saltos até ultrapassar a lua

continuar deitado até se destruir a cama

permanecer de pé até a polícia vir

permanecer sentado até que o pai morra



Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária

amar continuamente a posição vertical

e continuamente fazer ângulos rectos



Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora

por-se nu em casa até a escultora dar o sexo

fazer gestos no café para espantar a clientela

pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia

contas histórias obscenas uma noite em família

narrar um crime perfeito a um adolescente loiro

beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina

deixar fumar um cigarro só até meio

Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias

beber-se por um copo de oiro e sonharem-se as Índias.






Por António Maria Lisboa
Arte de Cruzeiro Seixas


CANTIGA PARA NÃO MORRER






Quando você for se embora,

moça branca como a neve,

me leve.



Se acaso você não possa

me carregar pela mão,

menina branca de neve,

me leve no coração.



Se no coração não possa

por acaso me levar,

moça de sonho e de neve,

me leve no seu lembrar.



E se aí também não possa

por tanta coisa que leve

já viva em seu pensamento,

menina branca de neve,

me leve no esquecimento.






Por Ferreira Gullar
Fotografia de Mary Carson

sexta-feira, 12 de novembro de 2010



DE TARDE






Naquele "pic-nic" de burguesas,

Houve uma cousa simplesmente bela,

E que, sem ter história nem grandezas,

Em todo o caso dava uma aguarela.



Foi quando tu, descendo do burrico,

Foste colher, sem imposturas tolas,

A um granzoal azul de grão-de-bico

Um ramalhete rubro de papoulas.



Pouco depois, em cima duns penhascos,

Nós acampámos, inda o sol se via;

E houve talhadas de melão, damascos,

E pão-de-ló molhado em malvasia.



Mas, todo púrpuro, a sair da renda

Dos teus dois seios como duas rolas,

Era o supremo encanto da merenda

O ramalhete rubro das papoulas!






Por Cesário Verde
Arte de Monet

domingo, 7 de novembro de 2010



O QUE HÁ EM MIM É SOBRETUDO CANSAÇO






O que há em mim é sobretudo cansaço

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.



A subtileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto alguém.

Essas coisas todas -

Essas e o que faz falta nelas eternamente -;

Tudo isso faz um cansaço,

Este cansaço,

Cansaço.



Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada -

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossivelmente o possível,

Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,

Ou até se não puder ser...



E o resultado?

Para eles a vida vivida ou sonhada,

Para eles o sonho sonhado ou vivido,

Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...

Para mim só um grande, um profundo,

E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço.

Íssimo, íssimo, íssimo,

Cansaço...






Por Álvaro de Campos
imagem por AAT sobre quadro de Almada Negreiros


A ERVA DIZEM VOCÊS...





A erva dizem vocês

Não faz qualquer barulho a despontar

A criança a crescer

O tempo a passar

Não têm o ouvido verdadeiramente apurado vocês.






Por Pierre Albert-Birot
Tradução de Lp, Do Trapézio Sem Rede (
http://arspoetica-lp.blogspot.com/)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010



PLATÔNICO






Por que só agora

e não antes?

Há muito

seríamos amantes.

Felizes, talvez,

desde outrora.

E por que não o fez?

Por que só agora?



Que espécie de amor

é essa,

a viver desprovida

de pressa?

É amor que aguarda

retorno

ou que apenas se guarda,

como se morno?



Por que só agora

e não antes?

Temia

que nos fizesse distantes?

O que se perde de vida

a cada hora...

Pretendia dizer-me algum dia.

Pois me diga: por que só agora?






Por Renata de Aragão Lopes
Ler mais poesia sua em http://docedelira.blogspot.com/

domingo, 31 de outubro de 2010



TALVEZ UM BARCO






Podia dizer-to agora mesmo

mas do silêncio já nada me separa

ou só o tempo lento ainda de um momento

uma palavra só sem mais cansaço



Será talvez um barco se fores tu

- a chuva da manhã nos vidros limpos

e o vulto esguio perdido duna a duna

de quem regressa apenas de partida



Um pássaro esquecido brilha ainda

em dois olhares levemente embaciado

pela mesma indecisa febre antiquíssima



Podia dizer-to agora mesmo

E talvez seja um barco se fores tu

- ou serei eu talvez se for o mar






Por Miguel Serras Pereira


BECHEROVKA






Norueguesa, alta, de um moreno

duvidoso que sorria muito.

Pedia-me insistentemente para não estar

triste como deveras estava.

E pagou-me, creio, o último copo,

antes de me perguntar “o que fazia”.



Escrever, sobre a morte, não é

exactamente uma profissão.

Mas foi a resposta que lhe dei,

enquanto um guardanapo qualquer

abreviava, só para ela, a minha “obra”.



Nunca saberei se percebeu a letra,

se comprou os livros, se chegou

a ouvir o que em péssimo francês

lhe tentei dizer nessa noite, a mais perdida.



Os versos são quase sempre isto: um modo

inaceitável de dizer que não tocámos o corpo

que esteve, por uma vez, tão próximo

de nós – e que nem um nome breve nos deixou.






Por Manuel de Freitas


QUANDO FORES VELHA






Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,

Dormitando junto à lareira, toma este livro,

Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar

Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;



Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,

Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,

Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,

E amou as mágoas do teu rosto que mudava;



Inclinada sobre o ferro incandescente,

Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou

E em largos passos galgou as montanhas

Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.






Por W. B. Yeats
Tradução de José Agostinho Baptista

sábado, 30 de outubro de 2010





Quando eu era criança os velhos escolhiam

dias amarelos para morrer. Trazia

os pés descalços sobre muitos caminhos

como se não ouvisse a minha mãe

a chamar-me para dentro.

O céu pesava avermelhadamente sobre

a minha cabeça como o linho sobre os mortos.

Depois houve muitos invernos.

Intempéries de silêncio debaixo das arcadas

anunciaram o fim do mundo.



As paredes de casa eram permeáveis à luz.

A minha mãe tinha a densidade interior

de uma mesa e braços extensíveis:

archotes para fora ou bosques de bétulas.



A minha mãe pousava na superfície

do outono como um anjo ferido.

Quando eu era criança a tijoleira da cozinha

representava constelações e eu esperava

pacientemente o dia da ira do Senhor.



Quando eu era criança anoitecia

sobre a verdade intrínseca de haver ruas

pequenas e horizontes pequenos no fundo

das ruas. Os velhos sentavam-se na soleira

das portas nas noites de verão e as raparigas

sangravam demoradamente o calor

para dentro dos pulmões e cresciam-lhes

os seios, e fechavam-se em casa. Quando eu

era criança a minha mãe pousava na superfície

do outono como um anjo ferido.







Por José Rui Teixeira
Fotografia de Karena Goldfinch



Não sei como dizer-te que a minha voz te procura

e a atenção começa a florir, quando sucede a noite

esplêndida e casta.

Não sei o que dizer, especialmente quando os teus pulsos

se enchem de um brilho precioso

e tu estremeces como um pensamento chegado. Quando

iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado

pelo pressentir de um tempo distante,

e na terra crescida os homens entoam a vindima,

– eu não sei como dizer-te que cem ideias,

dentro de mim, te procuram.



Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros

ao lado do espaço

o coração é uma semente inventada

em seu ascético escuro e em seu turbilhão de um dia,

tu arrebatas os caminhos da minha solidão

como se toda a minha casa ardesse pousada na noite.

– E então não sei o que dizer

junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.

Quando as crianças acordam nas luas espantadas

que às vezes caem no meio do tempo,

– não sei como dizer-te que a pureza,

dentro de mim, te procura.



Durante a primavera inteira aprendo

os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto

correr do espaço –

e penso que vou dizer algo cheio de razão,

mas quando a sombra vai cair da curva sôfrega

dos meus lábios, sinto que me falta

um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer

coisa extraordinária.

Porque não sei como dizer-te sem milagres

que dentro de mim é o sol, o fruto,

a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,

o amor,



que te procuram.








Por Herberto Helder

terça-feira, 26 de outubro de 2010



MECÂNICA POPULAR






Os enormes problemas de engenharia

Que encontrarás ao tentar crucificar-te

Sem ajudantes, roldanas, engrenagens,

E outros dispositivos mecânicos inteligentes –



Numa sala pequena, clara e despida

Apenas uma cadeira de pernas frouxas

Para alcançar a altura do tecto –

Um só sapato para martelar os pregos,



Já p’ra não falar de estares nu para a ocasião –

De modo que cada músculo costal se exiba,

A tua mão esquerda já cravada,

Apenas a direita para limpar o suor



E ajudar-te a alcançar a beata

Do cinzeiro a transbordar,

Que não conseguirás acender –

E a noite chegando, a longa noite zumbindo.






Por Charles Simic
Tradução de João Luís Barreto Guimarães
Fotografia de Robert Parkeharrison

quarta-feira, 20 de outubro de 2010



O HOMEM QUE VINHA AO ENTARDECER


(Ouvindo “Sonho de Um Camponês”, por Teta Lando)






Falava com devagar, ajeitando as

palavras. Falava com cuidado,

houvesse lume entre as palavras.



Chegava ao entardecer, os sapatos

cheios de terra vermelha e do perfume

dos matos.



Cumpria rigorosamente os rituais.



Batia primeiro as palmas (junto

ao peito)

Depois falava.

Dos bois, das lavras, das coisas

simples do seu dia-a-dia. E todavia

era tal o mistério das tardes quando

assim falava

que doía.






Por José Eduardo Agualusa

terça-feira, 12 de outubro de 2010



TÂNIA






Vens pela praia

descalça deusa

em pensamentos

absorta



posso ser teu guia

consolo

o riso fácil

no comentário alegre



teus pés n'água afastam

os passos rápidos

o olhar no horizonte

enfrenta as águas

por onde passas a areia

te faz leve traço



posso ser o barco ao longe

onde olhas o espaço

guardião da terra

em último compasso.






Por Pedro Du Bois
Ler mais poesia sua em
http://pedrodubois.blogspot.com/
Imagem de AAT

domingo, 10 de outubro de 2010



AS MOSCAS






Vós, familiares,

inevitáveis gulosas,

vós, moscas vulgares,

lembrais-me todas as coisas.

Oh, velhas moscas vorazes

como abelhas em Abril,

velhas moscas pertinazes

sobre a minha calva infantil!

Moscas do primeiro fastio

na sala familiar,

as claras tardes de estio

em que comecei a sonhar!

E na aborrecida escola,

ágeis moscas divertidas,

perseguidas

por amor de tudo que voa,

- que tudo é voar – sonoras

embatendo nas vidraças

nas tardes de Outono, lassas…

Moscas de todas as horas,

da infância e adolescência,

da minha juventude dourada;

de esta segunda inocência,

que dá o não crer em nada,

de sempre… Moscas vulgares,

que de tão familiares

não tereis digno cantor:

eu sei que tereis poisado

sobre o brinquedo encantado,

sobre o livro fechado,

sobre a carta de amor,

sobre os olhos absortos

dos mortos.

Inevitáveis gulosas,

que não labutais como abelhas,

nem brilhais como borboletas;

pequeninas, facetas,

vós, amigas velhas,

lembrais-me todas as coisas.






Por Antonio Machado
Tradução de José Lima


O PAÍS DAS MARAVILHAS






Não se entra no país das maravilhas

pois ele fica do lado de fora,

não do lado de dentro. Se há saídas

que dão nele, estão certamente à orla

iridescente do meu pensamento,

jamais no centro vago do meu eu.

E se me entrego às imagens do espelho

ou da água, tendo no fundo o céu,

não pensem que me apaixonei por mim.

Não: bom é ver-se no espaço diáfano

do mundo, coisa entre coisas que há

no lume do espelho, fora de si:

peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,

um dia passo inteiro para lá.






Por Antonio Cicero
Ler mais poesia sua e de outros em http://antoniocicero.blogspot.com/
Fotografia de Aguiadourada

sábado, 25 de setembro de 2010







Não partas já. Fica até onde a noite se dobra

para o lado da cama e o silêncio recorta

as margens do tempo. É aí que os livros

começam devagar e as cores nos cegam

e as mãos fazem de norte na viagem. Parte apenas



quando a manhã se ferir nos espelhos do quarto

em estilhaços de luz; e um feixe de poeiras

rasgar as janelas como uma ave desabrida.

Alguém murmurará então o teu nome, vagamente,

como a gastar os dedos na derradeira página.



E então, sim, parte, para que outra história se

invente mais tarde, quando os pássaros gritarem

à primeira lua e os gatos se deitarem sobre

o muro, de olhos acesos, fingindo que perguntam.





Por Maria do Rosário Pedreira
Arte de Samuel van Hoogstraten


PONTO DE VISTA III





saltei do precipício

e a queda se fez caminho





Por Eugênia Fraietta
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sábado, 18 de setembro de 2010


PRESSA DE VIVER


( para o Zé, que nunca lerá este poema)






Negro , trinta e dois anos,

dealer. Pensava que a guerra

no Kosovo tinha por motivo único

a resistência à conversão em euros

- e talvez nisso tivesse, afinal, uma obscura

razão. Noutra noite, vi-me obrigado

a explicar-lhe o melhor que pude

o que era o FMI – que ele decerto

interpretou como um partido de ‘tugas

vagamente hermético. De facto, é outra

a sua economia: contos de xamon, pastilhas,

piropos de esquina, os dois ou três filhos

de que apenas bêbedo se lembra.



Mas não é bem disso que eu hoje

queria falar. Passámos a noite

lado a lado, no mesmo balcão.

Demorei algum tempo a cumprimentá-lo

- “tá-se?”. Pediu logo grandes, imensas

desculpas por não me ter visto.

Que era “pressa de viver”, garantiu-me,

aquilo que nos torna tão cegos

às evidências, ao rosto desse próximo

que só por bíblico acaso amamos

- quando o ódio, mais discreto,

dá nome e sentido às ruas.



Fingi acreditar, procurei não

desmentir o seu olhar verde

vindo de outro qualquer planeta.

Seria difícil explicar-lhe àquela hora

a compulsiva demora de morrer

que me faz sair de casa e procurar,

entre ninguém, a pior das companhias: eu.



Acabou por levar para a rua

uma imperial de plástico, lembrado

talvez dos possíveis clientes

a quem ajudará a esquecer um emprego,

o desamor, o calor sinistro deste Verão.

Na verdade, pouco mais haveria

a dizer sobre este corpo brando que

há vários anos se encosta às minhas noites.

Serve-me de escudo para os bárbaros mais novos

- e protege-se, o melhor que pode,

da rusga sem objecto a que chamamos vida.






Por Manuel de Freitas
Música e interpretação de Velvet Underground

sexta-feira, 17 de setembro de 2010



DEZEMBRO





Neva

e mesmo assim os desamparados

continuam

a transportar cartazes em sanduíche -



um proclamando

o fim do mundo

o outro

os preços de um barbeiro local.





Por Charles Simic

terça-feira, 7 de setembro de 2010


1988, CHET BAKER





Prometeu que tocaria My

Funny Valentine como nunca

o fizera. E foi, também na voz,

verdade (a verdade é sempre

uma coisa muito triste;

faltavam-lhe duas semanas para morrer).



Comprei o disco quase vinte anos

depois, e só por difícil acaso

o fiz naquela cidade, com a

mesma ou nenhuma vontade de morrer,

agora que volta a dizer "stay

little valentine" e a chuva torna

as bicicletas uma metáfora evitável,

contrária à ferrugem do que sinto.



Sim, é isso: ninguém nos espera

- e nem todos sabemos voar, sofrer,

cantar assim o desconforto.

Nada deveria ser tão triste,

até porque nada deveria ser.



Mas não me roubem, por favor, esta canção.





Por Manuel de Freitas
Interpretação musical de Chet Baker

domingo, 5 de setembro de 2010



SONETO NA MORTE DO HOMEM QUE INVENTOU AS ROSAS DE PLÁSTICO






O homem que inventou as rosas de plástico morreu.

Reparem na sua importância:

as suas flores imperecíveis e imaculadas nunca murcham

mas resolutamente velam o seu túmulo através da escuridão.

Ele não compreendeu a beleza nem as flores,

que enredam os nossos corações em redes suaves como o céu

e nos prendem com um fio de horas efémeras:

as flores são belas porque morrem.

A beleza sem o seu lado perecível

torna-se seca e estéril, um palco abandonado

como uma floresta de enganos. Mas a realidade

dá razão à invenção deste homem; ele conhecia a sua época:

uma visão do nosso tempo impiedoso revela-nos

homens artificiais cheirando rosas de plástico.






Por Peter Meinke
Tradução de Ricardo Castro Ferreira
Tradução retirada do blogue Do Trapézio, Sem Rede


NOVA IORQUE





A cidade grande morre de frio

e a chuva não lava os rostos

de seus negros



A cidade brilha nas paredes molhadas

e à noite

homens passam correndo

nas esquinas

sem nome



Um gato se enrosca no jornal velho

e o asfalto treme

à passagem do subway



Nas ruas, muros

nos letreiros, luzes

nas vitrinas, cifras

nas calçadas, povo

mas tudo tão frio

na cidade



Belas moças que passais

por que não vos importais

com o frio que está fazendo?

Jovem loura distraída

por que é duro o vosso olhar?



Rostos, muitos

gente, pouca

nas ruas de Nova Iorque.





Por Mauro Salles

sábado, 4 de setembro de 2010



MOVIMENTO E NÃO





garças brancas

sobre o lago



impassível



- movimento

e não



tudo



na natureza

se equilibra





Por Nydia Bonetti
Ler mais poesia sua em http://nydiabonetti.blogspot.com/

quinta-feira, 2 de setembro de 2010



O SONHO DO POEMA






Dorme cedo o poema

no corpo do poeta



por duas razões que não aceitam disputa:

ou porque o poema se abstém do sonho

ou porque o guerreiro

decidiu descansar!

Entre duas mãos sonhadoras apenas - o poema dorme de pé!






Por Boujema el Aoufi
Tradução de André Simões

quarta-feira, 1 de setembro de 2010



CONTO






Existem minas

ao norte de uma grande cidade

onde os mineiros

não vêem a luz

há pelo menos 25 anos.

Dizem que têm

olhos fosforescentes

como peixes das regiões abissais.

Dizem que nascem da terra

e se proliferam por bipartição.

Dizem que têm pulmões modificados

e que nunca choram

porque dói muito.

Mas são homens,

ainda homens,

os mineiros do Norte.






Por Micheliny Verunschk